25 de out. de 2012

Felicidade Clandestina


Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio
arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos
achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do
busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias
gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de
pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal
da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra
bordadíssima palavras como "data natalícia” e “saudade” .
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres.
Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma
tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses.
Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas
em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias
seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de
livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua
casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro
ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu
como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se
repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo
indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho.
Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer
esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio
de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a
nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com
enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à
porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se
refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora
mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser."
Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é
tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro
na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando
como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com
as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar
em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração
pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para
depois ter o susto de o ter. Horas  depois abri-o, li algumas linhas
maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo
comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o,
abria-o por alguns instantes. Criava as  mais falsas dificuldades para aquela
coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina
para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia
orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo,
sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

Clarice Lispector(In Felicidade clandestina. Rocco, 1998.)

Vale a pena a coragem da persistência...
O êxtase da conquista é bem maior e tudo fica muito mais saboroso!

 Lu Nogfer


5 comentários:

  1. Lú amada amiga ...Clarice um ícone maravilhoso em seu discorrer ..sempre muito sábio e de rara beleza ..é um presente poder lê-la ....Seu belo coração sabe escolher bem ...Lindo viu com um grande Beijo do amigo Pedro Pugliese

    ResponderExcluir
  2. Amiga, acho que meu comentario nao enviou mas se for duas vezes publique so o segundo ok rs?Please!

    Nossa, Lu, mas que historia interessante hein?Um text muito gostoso de ler!
    Coitada da menina.Fiquei cansada pelas tantas idas dela na casa da colega rusguenta!rs e tem tanta gente assim por ai, né? mas valeu a pena nao ter desistido!Ela vai devorar esse livro devagar e com sabor de conquista.
    E como vc disse no final do post, é a persistência que torna tudo muito melhor.E isso é válido pra tudo o que almejamos na vida pois somente os fracassados desistem na primeira tentativa.

    Adorei a leitura amiga.
    Clarice sempre Clarice né?
    Esse texto que vc escolheu é um grande presente para os seus leitores pois alem de deliciosa leitura, traz um belo exemplo a ser seguido!
    Obrigada e Parabens pelo post lindo como sempre!

    Beijocas


    ResponderExcluir
  3. Lu: Ela podia ser tudo gorda baixinha e tudo mais, mas era uma mulher e mulher para mim é sempre uma bela flor independente daquilo que ela seja gorda, magra, baixa, alta, bonita ou feia. Lindo gostei Clarice é um icone da escrita.
    Beijos
    Santa Cruz

    ResponderExcluir
  4. Clarice é maravilhosa! Cheia de atitude, dispensa comentários. Passa no meu blog que tem um presente no meu blog pra vc, espero que goste.Um xero.
    http://soltandoamente.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir
  5. Leitura maravilhosa você me proporcionou. Além de valorizar a persistência, a forma como ela tratou o assunto é mágica. Bjs.

    ResponderExcluir

Seja bem-vindo. Aqui você vai encontrar um pouco de acidez, mas tem um pouco de doçura também, como a vida. Fique a vontade para deixar o seu comentário atitude. Logo após a leitura, o mesmo será publicado.
Muito obrigada pela visita e volte o quanto desejar.
Abraços carinhosos!

Lu Nogfer (Administradora)
Contato: lu.nogfer@hotmail.com